terça-feira, julho 18, 2006

A Menina do Cadarço Desamarrado




Uma das muitas coisas que me lembro dela é a sua risada de quem não está nem aí quando eu dizia "ei, seu cadarço está desamarrado". Linda. Com a certeza de que nunca vai cair estampada nos olhos verdes feitos sobre medida.

Foi a primeira vez que falei com ela. No caos do centro da cidade, passa essa garota olhando seu reflexo nas vitrines, com o pensamento muito, muito longe, e o cadarço arrastando no chão, escapando, como que por milagre, de outros pés apressados que passavam. Fiz o que qualquer pessoa faria, avisei do cadarço, mas ela não parou pra amarrar. Aí pensei em como essas pessoas que levam a vida com tanta displicência são felizes.

Alguns anos mais tarde, o destino quis que freqüentássemos as mesmas aulas na faculdade. E eu vi, pelos trabalhos impecáveis e notas invejáveis que ela não era displicente coisa nenhuma. Mas o cadarço continuava desamarrado. Um dia, tomei coragem e perguntei por que ela não amarrava o cadarço, se era perfeccionista até o último fio de cabelo. Depois de rir por 5 minutos inteiros, ela dá a mais improvável das respostas: "ah, éque eu nunca aprendi a amarrar".

Eu poderia não ter acreditado, como quase é o caso agora. Deveria haver outro motivo, não era possível que alguém com um cérebro brilhante daqueles e perfeccionista ao ponto de apagar uma palavra um milhão de vezes sóporque as letras não estavam simétricas não soubesse amarrar os sapatos. Talvez fosse uma válvula de escape para a educação rígida que tivera na infância, ou um sinal de que ela não era tão inatingível como parecia. Mas seus olhos apertados naquele sorriso que dispensa explicações me convenceram, e eu caí como um patinho. O fato é que me apaixonei pela menina do cadarço desamarrado. Menos por sua beleza indefectível que pelo mistério que envolvia esse detalhe que só eu parecia notar.

Meus modos pareciam os de um menino de 14 anos com a primeira namorada quando a chamei para ir ao cinema pela primeira vez. Já éramos mais ou menos amigos, e com certeza ela viu meu rosto ficar de todas as cores quando fiz o convite. A sorte é que as mulheres adoram um bobo apaixonado, e ela aceitou. Algumas horas e muita pipoca depois, era minha namorada.

Com o tempo, fui descobrindo as outras coisas que ela gostava, e que só a tornavam mais fascinante pra mim. Tudo parecia ótimo, mas eu continuava intrigado com o caso do cadarço. Aquela história não me convenceu. Um dia, resolvi pressioná-la para contar a verdade. Disse que estaria tudo acabado se ela não abrisse o jogo. Mas como são as mulheres... Veio com uma conversa de que desse jeito não dá, um relacionamento sem confiança não vai pra frente e, antes que eu percebesse, ela é que havia terminado comigo. Por causa de um cadarço. E saiu, tentando conter as lágrimas, pisando forte com o mesmo cadarço desamarrado. Euquase falei "cuidado, vai cair", como sempre fazia, brincando. Mas dessa vez sabia que não iria receber um sorrisinho malandro, mas um livro na cabeça, possivelmente. Quem sabe ela teria voltado se eu me atrevesse...

Nunca mais tive notícias dela. Vivia dizendo que ia pra a Europa, deve ter ido mesmo. Passei meses tentando entender como pude ser idiota a esse ponto. Se era o mistério que me fascinava, por que acabar com ele?...Tive outras namoradas depois dela, mas nenhuma tão inexplicável e que mexesse tanto comigo. Agora ando na rua de cabeça baixa, olhando para todos os pés, pra ver se o acaso, destino ou sei lá o que nos põe juntos de novo, eu e a menina do cadarço desamarrado.


Aline Silveira Cavalcanti
Junho, 2005

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